quinta-feira, 13 de novembro de 2008

METODOLOGIA DO TREINO

Metodologia do treino técnico-táctico

Conceitos e preconceitos

No treino global duma equipa de futebol todos os sectores, princípios e fundamentos são importantes, tornando-se difícil eleger um deles como o mais marcante, ou imprescindível, ao qual deve ser dada maior importância, no sentido de ser melhor ou mais aturadamente trabalhado.
Contudo, se tivermos que atribuir uma importância funcional diferenciada ela recairá por certo no apuro técnico-táctico por ser o eixo fundamental do jogo e o motor de desempenho essencial da equipa em campo.
Ao fim e ao cabo tudo se movimenta em torno deste binómio, constituindo-se os restantes elementos em factores de alicerce indispensáveis, embora funcionando mais como partes essenciais de um todo e não o cerne fundamental do envolvimento geral duma equipa.

Ao longo dos tempos os esquemas de trabalho foram proliferando, funcionando quase sempre a razão e o status de cada momento ao sabor das modas da ocasião, pouco importando que os resultados possam consagrar ou não os esquemas em uso, sendo mais fácil e tradicional a via punitiva do treinador, que não soube interpretar com acerto a moda em curso, já que o “castigo”, a recair sobre meia dúzia jogadores da equipa – muitas vezes o cerne da questão – sempre se mostrou, e mostrará, uma via difícil, cara e pouco consentânea com a perspectiva de necessidade de outros resultados no jogo seguinte.
Hoje em dia as novas modas continuam a ditar as suas regras, porque há sempre alguém que se rebela contra os consensos instituídos, criando uma nova ordem que fará escola e nova razão, até que outro “revolucionário” se decida a romper o alinhamento da última certeza e procure instituir outra.
No fundo, o futebol não diverge muito da evolução natural das coisas, onde o que hoje é verdade amanhã é mentira, ou no mínimo, menos verdade.

Sem pretender revolucionar o que quer que seja, atrevo-me a percorrer um espaço de transcendente importância e, nesse sentido, sujeito a uma enorme multiplicidade de opiniões, conceitos e preconceitos.
Refiro-me à metodologia do treino técnico-táctico, ou seja, a determinação dos melhores caminhos que hão-de conduzir os atletas à compreensão e integração dos elementos de trabalho propostos ao longo de semanas e meses, tornando possível exprimir posteriormente o jogo na sua globalidade, segundo as ideias e os conceitos do treinador.
Algumas regras que aqui se pretendem abordar são aplicáveis quer à condição técnica quer ao entrosamento táctico, até porque a primeira cabe na segunda, colhendo dessa sobreposição múltiplos benefícios.

Aqui há tempos um amigo meu que é treinador de futebol convidou-me para ir assistir a um treino da equipa que na altura estava a orientar. Entre vários exercícios desenvolvia-se um em que quatro jogadores, partindo da linha de meio campo, progrediam pela ala direita numa troca de bola vistosa – praticamente quase sempre ao primeiro toque – desenhando um determinado esquema pré determinado e de belo efeito visual. O exercício desenvolvia-se em grande velocidade com os jogadores a percorrerem, numa corrida desenfreada, um figurino previamente traçado, sem qualquer oposição, terminando com um remate à baliza deserta, desferido da zona frontal. Registe-se que, mesmo sem guarda-redes, alguns remates saíram ao lado… Esta última e estranha circunstância fica, em parte, a dever-se a rotinas e evoluções simplificadas, onde as propostas de trabalho se resumem a memorizar percursos e a uma diminuta participação activa na representação criada.
Em conversa no dia seguinte, referindo-se àquele exercício, o meu amigo perguntava-me:
“Então o que achaste daquele exercício?”
“Achei que foi um razoável treino de velocidade, uma coreografia interessante, de mistura com alguns elementos técnicos, embora incipientes…”
“Não! Aquilo foi um ensaio de um esquema táctico. Uma progressão organizada pela ala direita.”
– respondia-me o meu amigo, corrigindo-me.
Meio na brincadeira ainda retorqui:
“Pois. Mas o adversário era fracote…” – ante alguma perplexidade do meu amigo.
“Adversário? Qual adversário?
“Aquele contra o qual os quatro jogadores jogavam…”


É um pouco à volta deste exemplo que nos queríamos deter, chamando à atenção para um erro crasso que é cometido com alguma frequência.
Neste caso, propus ao meu amigo a realização de um pequeno teste, que ele aceitou de bom grado.
No dia seguinte repetiu-se o mesmo exercício. Só que desta vez foi colocado apenas 1 jogador com características defensivas a meio do percurso com a missão de procurar dificultar aquela acção esquemática ofensiva. Um jogador apenas.
Em 6 exercícios, 2 falharam: um foi interceptado pelo único jogador com carácter defensivo e o outro ocorreu num passe errado em que a bola foi enviada para fora por acção de pressão do mesmo jogador.
Ou seja; com apenas 1 jogador contra 4 atacantes o “esquema táctico” falhou em 33%.
De seguida colocaram-se 2 jogadores com idêntica função de procurar dificultar a acção ofensiva em questão.
Em 10 exercícios 6 falharam: 3 foram interceptados e os ouros 3 resultaram em passes errados por acção pressionante dos defesas. Ou seja; com 2 jogadores contra 4 o “esquema táctico” falhou em 60%.
Quando me preparava para propor um 4X4 final e mais esclarecedor ainda, o meu amigo atalhou:
“Chega! Já percebi. Ontem estivemos a perder tempo.”
“Não terá sido bem assim. Qualquer movimentação com bola e deslocação dos jogadores, segundo um determinado figurino, obtém um ganho técnico mínimo que seja, dependendo da complexidade e esquema do exercício. Contudo, em termos tácticos, o ganho é nulo.
Mas o verdadeiro treino técnico-táctico ia começar agora…”
– informei eu.

Com alguma insistência consegui convencer o meu amigo – em trânsito de alguma frustração – a empreender uma outra experiência com um figurino semelhante.
Ainda no mesmo contexto de exercício, promovendo alguma rotatividade equilibrada entre os jogadores de ambos os sectores, a fim de despistar o factor cansaço, colocaram-se 4 jogadores defensores e os 4 atacantes, rodando 2 jogadores em cada sector de 3 em 3 repetições.
Foi proposta a realização de 3 séries, com seis repetições cada uma, num total de 18 repetições, anotando-se os resultados em cada uma das séries.
Obtiveram-se os seguintes resultados:
1ª série: 0 concretizações; 6 erros.
2ª série: 1 concretização; 5 erros.
3ª série: 3 concretizações: 3 erros.
Embora o teste careça de algum rigor científico considerando a amostragem, afigura-se claro que o treino começou a produzir alguns efeitos na 3ª série. Ou seja; ao fim de um certo número de repetições os jogadores envolvidos no sector atacante (sem que algum esquema tenha sido delineado com antecedência para esse efeito específico) começaram a intuir e a elaborar soluções aplicáveis às dificuldades criadas pelos jogadores do sector defensivo, desenvolvendo aquisições que têm todas as condições para se firmarem no modo de jogar, logo reutilizáveis em contextos semelhantes, logo um conjunto de instrumentos activos disponíveis para aplicação nas mais variadas circunstâncias de jogo.

Na perspectiva de trabalho do tal “esquema táctico” inicial sem qualquer oposição, visando o entrosamento entre os jogadores – que, naturalmente, se espera poder colocar em prática nos próximos jogos e no futuro – o ganho é praticamente nulo e frequentemente frustrante para o técnico, que engendrou um encadeamento de movimentos aparentemente perfeito e, dir-se-ia mesmo, belo para a vista e para o espírito.
Não raras vezes se podem observar evoluções de jogadores em treino mais parecendo uma coreografia muito bem articulada, deixando no ar apenas o desejo ardente de que a mesma se repita no próximo jogo, mas desta vez por entre os adversários que, infelizmente, não se disporão a fazer figura de espectadores, nem muito menos dispostos a apreciar o “espectáculo”.
Salvo raras excepções de componente técnica muito específica e precisa, nenhum exercício que envolva apuramento táctico ou técnico colhe resultados se for esquematizado e exercitado sem a componente de oposição imprescindível à sua consolidação.
Em primeiro lugar pela própria essência do elemento estrutural do homem. Dificilmente este consolida aquisições quando a estrutura do exercício se apresenta simplificada e destituída da necessidade de resolução de problemas que agucem o engenho e a arte para as superar.
A extrema simplicidade repetitiva de um exercício conduz à mecanização do movimento, dispersão da atenção e abaixamento consequente dos mecanismos de aquisição e integração.
Qualquer exercício concebido sem a necessária oposição é, pois, num contexto de assimilação e elaboração, uma pura perda de tempo, mas, mais ainda, uma convicção de bem treinar que não colhe posteriormente as performances que delas se esperam. Não só, mas também porque se trata de uma proposição de trabalho que não confere com a realidade, logo destituída de factores de transposição útil para o jogo, condição essencial que deve prevalecer em todas as propostas de trabalho que venham a ser congeminadas no sentido da promoção de aquisições fundamentais no contexto técnico-táctico.
O adestramento em treino de uma movimentação simples com a pretensão, ou esperança, de que esta venha a ocorrer em jogo é um puro exercício de fé e a convicção de que treinamos sós na expectativa de que iremos jogar também sós.

Dizia um dia um treinador ao intervalo:
“Andámos nós duas semanas a treinar aquele esquema para agora nem uma única vez o colocarem em prática.”
Respondia um dos jogadores visados, revelando alguma confusão no seu espírito:
“ Se quer que lhe diga Mister, com a confusão do jogo, já nem me lembro bem como era o esquema, quanto mais colocá-lo em prática…”

Subjaz ainda que é no confronto entre quem defende e ataca que ocorre o entrosamento e o entendimento quanto à forma como cada companheiro responde às dificuldades colocadas pelo adversário, resultando na aquisição de soluções de grupo, adquiridas e consolidadas pelos jogadores (tendo em conta o conhecimento com que ficam do modo de jogar de cada um deles) as quais poderão no futuro – qualquer futuro – contribuir de forma cabal e racional para a performance desejada por qualquer técnico: levar de vencida a oposição do adversário e chegar ao golo.
No fundo, o importante será inculcar no atleta a capacidade de tomar decisões acertadas em consonância com os companheiros e de acordo com os múltiplos problemas que ocorrem no jogo, reformulando, de forma inteligente e coerente, todo o tipo de dificuldades criadas pelo adversário e as próprias vicissitudes do jogo.

Na perspectiva do exercício em apreço, e a título de exemplo, sugere-se como metodologia a divisão de um meio campo em três faixas longitudinais (ala esquerda, central e ala direita) colocando em cada uma delas os jogadores que defendem habitualmente nessas zonas, em confronto com igual (inferior ou superior) número de jogadores atacantes (dependendo da intensidade e especificidade de treino que se pretende incutir, convindo alternar pelas três situações).
P.e.: se coloco um número de atacantes superior ao número de defesas o trabalho terá uma incidência de intensidade maior para os jogadores que defendem, tornando mais fácil (logo, mais exigente em termos de resultante) a tarefa dos atacantes.

Objectivo: bola nos atacantes que procuram ultrapassar aquela barreira defensiva, no espaço delimitado por cada corredor, criando e recriando os meios e as formas mais adequadas e ajustadas às diferentes oposições que vierem a ser colocadas pelos jogadores que defendem.
A largura dos corredores deve ir variando ao longo de cada sessão de treino, procurando simular situações de dificuldade de jogo criadas pelo adversário e as variantes do próprio jogo.
Embora seja importante que os jogadores evoluam preferencialmente nos sectores predominantes da sua actuação, será ajustado que ocorram trocas de proximidade entre alguns jogadores das alas e a faixa central, ou mesmo outras que o técnico entenda conformes, tendo em conta a disponibilidade e globalidade de funções de cada jogador. Por outro lado, será uma boa medida ir mudando os jogadores em confronto, a fim de variar o tipo, forma e a intensidade da oposição, subvertendo igualmente algum vício.
Como conceito adjacente, neste tipo de exercício sugere-se a utilização de jogadores momentaneamente inactivos (guarda redes, p.e.) para controlo dos foras de jogo. Nada pior que treinar os erros.

A partir da criação de um método com virtudes para a obtenção dos objectivos que se pretendem, todas as nuances, conjugações e reformulações são permitidas e desejáveis, tornando o treino mais rico e diversificado, retirando-lhe a monotonia, a rotina e a própria habituação a um esquema monocórdico com todos os inconvenientes daí resultantes.
O técnico não deve mudar apenas para mudar, dando a ideia de novidade.
Deve mudar quando sentir que se instalou o vício e as suas consequências.
Contudo, mudar não significa reformular tudo. Um exercício, sendo um bom exercício, não deve ser substituído só para criar novidade. Mudar pode ser conseguido apenas com pequenas alterações dentro do mesmo esquema de trabalho, que conduzam à reformulação da actuação do jogador obrigando-o à busca de novas soluções; logo, activo, atento e empenhado, ou seja, disponível para as novas aquisições, a que o treino deve sempre obrigar, e permanentemente entusiasmado com a variedade, alternância e riqueza de problemas que lhe são colocados.
Um atleta atento e vivo no treino será um atleta atento e vivo no jogo.

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